quinta-feira, maio 19, 2005

 

SOCEDADE RASCA


Tudo começou pela chamada "televisão da intimidade". Os participantes contavam histórias da sua vida, ou pediam perdão a terceiros das ofensas que lhes tinham feito, ou davam conta de sentimentos inconfessados.
Prestavam-se, expondo-se perante milhões de pessoas, a revelações e exercícios públicos de confissão e de contrição que nunca teriam ousado fazer fora daquelas circunstâncias. Mas havia ainda uma ligação, ténue embora, ao embrião de uma narrativa. Eles contavam uma história que podia ser mais ou menos desenvolvida e carregada de pormenores: "Bati no meu irmão", "abandonei a minha família", "passei a detestar a minha mãe"... E, além disso, na maior parte dos casos, eram supostas, ou esperadas, quer uma "redenção" da falta quer uma solução do problema: "Peço perdão ao meu irmão", "procuro ansiosamente a minha família", "espero que a minha mãe me compreenda."
Fosse para se flagelarem em público ou para se exibirem, fosse para darem nas vistas ao menos uma vez na vida, fosse por qualquer outra razão, interessam menos os mecanismos psicológicos que os levavam a essas atitudes do que a avidez das plateias a vibrarem com o espectáculo que assim lhes era proporcionado. Em todo o caso, repete-se, os espectadores eram confrontados com a especificidade de uma história humana concreta, conquanto de interesse muito variável, e não parece que a opinião pública constituída se arvorasse em juiz dos actos revelados. Limitava-se a escrutinar a quase invariável banalidade das situações e a reagir, aplaudindo, não menos banalmente, o desfecho "feliz", devidamente agenciado pela produção do programa. As grandes audiências alcançadas poderiam então significar a vontade que muita gente tinha de assistir a uma história que terminava "bem".
Com a apresentação de programas do tipo "Big Brother", ou "Bar da TV", as coisas já não se passam assim.
As audiências já não querem saber o que aconteceu e cujo remate ocorreria na sua frente, mas, sim, presenciar o que vai acontecendo.
Já não lhes interessam nem a expiação pública nem o happy end possível, num sentido mais ou menos tradicional. Pretendem assistir agora a uma espécie de história in progress, sabendo que não há, propriamente, história à partida e que grande parte do que vai sucedendo não tem o mínimo interesse narrativo.
Nesse tecido ainda mais banal do acontecer, em que a conversa é de chacha, o ritmo televisivo não existe, os protagonistas consentiram previamente por escrito na revelação de toda a sua intimidade e não há nenhum especial problema humano, a não ser o da degradação de haver gente que se preste a agir assim e de haver ainda mais gente que se disponha a olhar assiduamente, o que as audiências esperam é um conjunto de conflitos e de incidentes, da agressividade ao sexo, tal como podem surgir e desenvolver-se num huis clos (o aspecto laboratorial de experimentação com seres humanos, a que há poucos meses se referia José Pacheco Pereira).
O que passou a interessar é o eventualmente chocante ou o eventualmente picante, é a gratuitidade fácil dos encontros eróticos, é a nudez feminina ou masculina surpreendida na casa de banho, é a instalação da permissividade como regra de vida, e também o improviso, a graçola, a grosseria, enfim, a pantalha transformada num universal buraco de fechadura, porque não parece mal dar uma espreitadela deleitada, e que permite ir derrubando um a um os tabus da vida privada. Não só as audiências procuram esse espectáculo como o colocam nos tops. E as comunidades a que pertencem os intervenientes, a começar pela maior parte das famílias, regozijam-se com o espectáculo, vibram com os incidentes como num jogo de futebol, torcem pelos seus candidatos no grau zero do pudor, legitimam o seu comportamento, qualquer que ele seja, e já não estranham praticamente nada.
Se as televisões não tivessem tomado a iniciativa, provavelmente a moda não teria pegado. Mas fizeram-no e as audiometrias dão-lhes razão, em todos os países, do mesmo passo que facultam uma medida bastante exacta da mediocridade de quem faz e da mediocridade de quem vê. O panorama é ainda mais eloquente se pensarmos que a maior audiência destes programas se situa nas chamadas "classes A e B". Os mais pobres não perdem muito tempo com essas coisas e os mais velhos, também não. São as classes mais bem-instaladas na vida e mais na força dela que fornecem o maior número de espectadores, e isto é um espelho da sua falta de referências, de valores e de expectativas.
As televisões acabam por funcionar como grandes "reveladoras" dessas características e, na fogueira concorrencial e demencial da disputa de audiências, não se sabe aonde é que irão parar. A cenas de pornografia hard-core? A autópsias transmitidas em directo?
Quando uns poucos consentem, milhões de outros aplaudem e ninguém encontra uma solução satisfatória, só pode prever-se que a sociedade acabará por devorar os seus próprios fundamentos, nesta espiral de estupidez e de vulgaridade indigna em que ela se revê e sobretudo se compraz, todos os dias. Vasco Graça Moura

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