quarta-feira, setembro 14, 2005

 

O PÃO-DE-LÓ


O Colégio contratou para professor de música o senhor Macedo, mestre de banda em Aguiar da Pena. Dele se apregoava que era pessoa idónea tanto para dirigir orquestra como charanga, e inexcedível de batuta em punho quando regia uma missa a instrumental. Viera das bandas do Porto, mas qual fora o seu passado ninguém investigara, nem houvera ensejo de ele o dizer. Aparecera na vila inculcado aos filarmónicos da terra, que careciam dele, por um patrício com loja de tamanqueiro na Rua Escura. Estipulados os honorários, ali pegou de estaca com mulher e um filho já espigadote. Os directores do Colégio – dizia o P. e Sulpício, o mais melómano dos prefeitos, que inspirados pela Virgem do Heptacórdio – assoldadaram-no pois, e um tufão de jucundidade varreu a bisarma taciturna, sua pedra, abóbadas e horizontes esquálidos. Muitos alunos correram pressurosamente a inscrever-se na aula de música, mediante uma espórtula tão insignificante que não houve papá ou tutor que a não suportasse de bom grado. O senhor Macedo vinha no sábado à tardinha, dava uma primeira lição, e despedia no domingo depois da segunda lição, salvo os dias em que a banda tinha compromisso em festividade ou arraial. Nessa eventualidade trocava os dias com a quarta e quinta-feira. Os alunos, diante deste móvel calendário, no sábado de tarde, durante o recreio, que era a hora crucial para a chegada do mestre, postavam-se aos dois grandes janelões, virados para a serra da Estrela, de olhos no caminho, ao longe, um pouco além do Miradouro, onde ele devia surgir. No Inverno, estava-se a mil metros de altitude, com o frio que inteiriçava a terra, não se pensava em abrir a vidraça, e, muito menos nos dias de codo, quando as árvores se transformam em andores cintilantes de pedrarias. E os rapazinhos comprimiam o nariz contra os vidros, dando cotovelada e espremendo-se para caberem todos. – Está a chegar à nascente – dizia um. – Está nada! É um cabreiro com o rebanho – opunha outro. A distância era grande até a lomba do caminho, e seria preciso ter olhos de lince para distinguir-se dali silhueta humana. Mas cada um deles se entregava a este jogo de curiosidade mental, espreitando por óculo de ver ao longe, calibrado pela fantasia. E amassagavam mais o focinho deslavado contra os rectângulos de vidro, que tinham de varrer com a mão, de quando em quando, embaciados pelo hálito de tantas bocas. Diante deles, até a guarita branca do Miradouro, estendia-se profundo e extenso um horizonte gris e parado de Dezembro. As águas do Longa cortavam com seus filetes brancos e ténues como retrós, tão perto estavam da madre, reluzindo ora aqui ora além por entre os amieiros, a paisagem baça e siderada. Corvos muito grandes e muito negros, que davam a ideia de retingidos a tinta de nanquim, cruzavam a espacidão côncava, animados dum impulso irreal. A Ocidente, uma coluna de fumo, estorgada, fogueira de pastores, subia, subia no ar, dissolvia-se sem cocar nem franjado. Os alunos não se cansavam de olhar. Pois havia alguma dúvida que dum instante para o outro ia descoser da vaguidão do horizonte o vulto tropiqueiro do cavalinho que trazia o senhor Macedo, ou as abas a fraldejar do seu capindó, se vinha a pé? E empinocavam-se uns sobre os outros, pois que o posto de observação era estreito para todos. Choviam os protestos. Trabalhava, por vezes, o sopapo. Uns que tais despegavam-se do cacho às upas.Se o mestre vinha a cavalo, abalavam todos para a portada, e as boas-vindas eram tanto para ele como para o garraninho vermelho, pequenote, de grande cauda vassoiruda e compridas clinas despenteadas, olhos grandes a rir e a dizer para todos: cá estou, amigos, cá estou! Os seus olhos, com efeito, eram lagos de doçura. Abraçavam-no uns pelo pescoço, enquanto outros lhe puxavam o rabo e davam palmadinhas nas ancas. Este ou aquele descobria que, mirando-se no espelho risonho das suas pupilas, era mais pequenino, ágil e mais bonito, e punham-se de joelhos diante dele, porque baixara logo a cabeça e reatava as suas meditações. Em tudo o cavalinho permanecia quieto e benevolente com a petizada, como se estivesse divertido ou hipnotizado.Mas eles breve se saciavam do enlevo, que não sofria renovamento. Uma fífia de flauta ou de violino fazia-os galgar de cambulhada para a sala de música. E dali a pouco a serra coroava-se dum diadema dionisíaco de sons. Às vezes – os tais dias de função nas aldeias –, o viso do caminho a sul escurecia sem despontar o senhor Macedo. Resvés das urzes, ao alto da balsa, onde quanto ao professor de geografia, o P. e Sulpício, o Longa tinha a nascente, um fuminho adensava-se, como se a terra vestisse a sua samarra de noite. O lume de água apagava-se mesmo nos meses pluviais, quando era um candelabro. No Verão, mal luminescia. -Mas, ó padre Sulpício – não perdia ensejo de contestar o P.e Barros, que era marrão – o senhor averiguou bem que ali é que nasce o Longa? Ou decretou? Sim, ele havia decretado contra os ventos e marés da opinião estabelecida que ali nascia o Longa. O senhor Flora, professor de primeiras letras, que era dali natural, sustentava que o Longa nascia no chafariz dos Chantres, ao fundo do lugar. A madre era aquele depósito valente de água, que brotava de duas bicas, com fartura cabonde para abastecer a população. Nos meses tórridos ou meses de inverno pegado, o jorro era inalterável, alimentado por canalículos de granito, que não podiam transportar mais água nem menos, dada a compressão do grande maciço de pedra da serra (pena-penha) sobre a rede subterrânea hidrográfica. O P.e Sulpício, bom homem e grande ratão, sustentava que com certos rios e ribeiros do planalto havia que desconfiar da origem. Geograficamente, qual era ela? A que vinha de mais longe. Ora, tendo contornado a povoação, pelo lado da Senhora da Pena Esquecida, descobrira um fio de água que vinha saltante e cantante lançar-se no arroio proveniente do chafariz dos Chantres. Medira-o até a confluência, e inclinara-se a que fosse aquele o verdadeiro manancial do rio que atravessa montes e vales, rega milharais e hortejos, faz moer centenas de moinhos e azenhas, produz gordos robalos e trutas, lampreias de Ponte Mariz em diante, e enguias em barda para a foz, e forma a ria especiosa que torna Ulmeiro a Veneza de Portugal. Havendo, porém, perlustrado o terreno com os discípulos durante vários passeios dominicais, acabara por descobrir, perto do Miradouro de Aguiar da Pena, uma fontainha vivaz, borbulhão miraculoso que nunca secava, mais longo em profundidade geográfica que as outras nascentes, e tivera de reconvir que era aí que devia considerar-se a origem do Longa. Na aula de geografia, acontecia perguntar: – Menino, onde nasce o Longa? Para o arreliar diziam apenas: – Na serra da Pena...Se o quisessem ver sorrir e de bom humor acrescentassem: – ...junto do Miradouro de Aguiar da Pena.Um pinheiro manso, extático, marcava-lhes no ar, às vezes nebuloso, um alvo menos fugidio aos olhos. Levantava-se ali como um gigante, dos contos antigos, a guardar um vau. Nos dias claros, reflectia-se na bacia de água, que se cavara ao pé, e os pastores vinham sentar-se à sua sombra a britar os pinhões. Macedo era um homem seco de carnes, bronzeado e alto, que se poderia julgar um dos frades de Zurbarán, liberto da coca do capuz. A pele estalava-lhe, recalcada sobre os ossos da face, atando os queixos que, com o bigode caído à Vercingetorix, lhe dava um ar nada comum, o seu tanto tumular. Ria pouco, de humor muito desigual, não obstante ser homem de bom fundo. Umas vezes mostrava-se-nos sombrio de todo, sem chegar a ser brusco, outras vezes a sua efusão, com os padres mormente, expandia-se franca e satisfeita, prevalecendo ao recato monacal, adoptado na Casa. Para os colegiais, a sua presença significava um dia de salvatério à ferrugenta grilheta do hic, haec, hoc, do emprego do nome predicativo, e da crónica do vasto e aborrecido orbe terráqueo. A música era o rubi, o grande rubi sobre que rodava toda a engrenagem da libertação, e por isso, não falando no mais, todos romperam a solfejar e cada um a preparar-se para tanger seu instrumento.

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