quinta-feira, setembro 15, 2005

 

URIEL



Há quanto tempo me deixaste, me abandonaste na areia ardente onde me deito, já no final da praia deserta? Consciente de como a tua ausência sempre me apunhala e mutila, lâmina a revolver-me o peito, remoendo na ferida que abre, na febre que provoca, tal como a aragem em brasa deste começo de tarde. Na grande inquietação transmitida pela tua ausência, ergo-me a procurar-te no momento em que sais da água, a lembrares a Vénus de Botticelli, enovelada ondulação do cabelo descobrindo a concha delicada das orelhas, o sol a encher-te de luz o verde dos olhos. Pelos ombros nervosos e ao longo das tuas costas, parecem escorrer pequenos diamantes em cascatas vagarosas, a tecerem uma teia tremeluzente em torno do corpo bronzeado: gotas lentas deslizam até às ancas, no retomar da queda a partir das pernas altas que o oceano mal dobou e eu polirei mais tarde com a minha língua. Sentindo nos lábios o sal da tua pele que dá guarida a novas inesperadas sombras, odores acres, ácidos e lívidos que não lembro e estranho. Conhecendo como conheço de ti o gosto macerado das uvas e o travo ruivo do pêssego. Clavículas como asas de anjo. Beleza cruel aprimorada pela imobilidade em que te deténs de súbito, a fazeres-me gemer de desejo, num anseio de posse que louvo e provo, no acerar inesperado da ponta aguçada da ameaça. "Beijar-te-ei sem pressa "- penso enquanto me imagino a beber-te o sabor do mar escondido na morna torpeza da tua nuca. Boca a descer em seguida num rodeio indolente, a tornear-te a cintura de cravo, afuselando o travo da tua barriga quando a ela chego e nela me detenho numa demora obsessiva que me impele a descer mais ainda pela penugem morena, tropeçando ou voando até às tuas virilhas. E aí desfaleço à mão vacilante da vertigem, que o anelo reabre, a exigir ser cumprido. A mesma vertigem que agora me invade ao ver-te emergir das ondas, com aquela hesitação quebradiça que desperta a ternura, mas que afinal é fruto da perversidade, a encobrir o susto, a insídia, a indizível apetência de negrume; indiferença distraída com que entras em mim, me colhes, me desfolhas enquanto te fito, e cada vez que me penetras enterras e retiras da minha existência a farpa, a faca, e escondes debaixo do travesseiro o veneno com que me injectas quando desmaio nos teus braços. Direito de sedução usado por ti com uma ambiguidade mestiça e revolvida, que de imediato ganha o traço e a demência duma insanidade recôndita, que muitas vezes se cruzam numa simulação de entrega, quando na verdade me matas, me enlouqueces, te afastas, partindo e regressando, indo e vindo numa cadência dúbia, para logo recuares, voltares a enredares-me, a algemar-me com a tecitura, meu amor, do encanto. Do teu encanto. Como eu te desentendo guardando-te! Agrura onde se aguçam tanto as rochas dos teus orgasmos como as pedras que me atiras e eu aceito, até me ofereço a elas neste emaranhado e entorpecente vício do teu corpo, à flor do pulso. Obsessão incontrolada de tocar-te, de arrebatar-te, de raptar-te. Adoecendo se me privas da tua presença, da tua preguiça, dos teus vagares, se me afastas dos teus limites, onde posso tomar-te e no mesmo movimento retomar-me, num acrescentado excesso do prazer de que me alimento. Sossobrando. Devorando o teu fulgor. Um dia hei-de confessar-te como amo as luas das tuas unhas, quanto dependo dos teus longos dedos e me apetecem os teus joelhos, como me excitam os teus quadris estreitos de lápis-lazuli, quanto cobiço o langor do teu hálito de amêndoa, como me sobressaltam os teus tornozelos, quanto aguardo a noite das tuas pestanas a descerem-te na face, numa lembrança de flores mascarinas. Destino que inventas na frieza, na indiferença, pois o que nos une é apenas iluminado pelo meu êxtase; sentimento ora vazio ora ameaçado pela tua presença, que me induz à escassez e à premonição, embora relutando diante da simples hipótese da tua perda. Na obstinação de amar-te, na determinação de ter-te, mas também em salvar-me, portanto em deter-te, em imobilizar-te. Ideia que me vem de repente: corda de linho e rendas a manietar-te nos lençóis enrodilhados, mancha nevada, ínvia, na quentura do quarto, onde detecto o teu suor de goivo no ar estagnado, no pano, nas paredes, nos desabrigados cantos obscuros. Enquanto no brasido da praia continuo a seguir-te, olhar tenaz na tua devassa, à medida que atravessas o extenso areal de Agosto, arrastando contigo o resto do refrigério das ondas, até chegares à minha beira atrasando o andar; atardando-te, provocando-me com a tua nudez simultaneamente delicada e sumptuosa, que exibes num misto de impudor e de inocência. E só tarde demais reconheço o ligeiríssimo sorriso de descuido a roçar o desprezo dissimulado na comissura dos teus lábios cheios, a desafiares-me. Repto petulante a que não me esquivo, e só então entendo o vento frio que se levantou no instante preciso em que a incendiada brancura do fim da manhã se revolve, te envolve e explode, criando, sem que dês conta, um cerco de lume à tua volta. Mas eu cego. Pelo tanto que desesperadamente me apeteces. Ligeiríssimo zunido de estio, de onde partem as vozes que surgem do nada, rodopiando insistentes, persistentes, na minha cabeça. E em obediência às suas ordens, eu vigio-te, eu marco-te, eu persigo-te. Ocultando-me melhor, quanto melhor atento na tua imagem, jamais te perdendo de vista, como se em vez de amante fosse detective. E nessa solitária mistura, sigo os teus cheiros, escuto os teus pensamentos, antecipo os teus ruídos, avanço na direcção dos teus passos, adapto os meus pés despidos às pegadas dos teus pés descalços. Soergo-me da areia onde me deito em desassossego, sento-me a tentar descobrir-te e, implacável, estilhaço a leve neblina que o calor entorna, e esqueço-me a reparar como flutuas quase adormecido no mar tranquilo, que te atordoa e te puxa, a fim de entregar-te à perdição das sereias. Mas de onde acabas por te afastar, relutante mas ágil, a esgueirares-te das nervuras da espuma, para surgires a contra-luz: corpo esguio, terno e hesitante, a aumentar sem piedade a minha sede. E quando te deténs sob a claridade equívoca, dou conta da rebentação das vagas miúdas, que numa ondulação mordida entre as tuas coxas delgadas, parecem esquivar-se a tocar o velo espesso, do qual conheço o cheiro intenso a bosque, a madeira verde e beladona esquiva. Equívoca. À noite implorar-te-ei: "Vem, minha rosa da Índia..." -, paixão da minha paixão, que a ti te aperfeiçoa e a mim me derruba; me empurra na demanda de tudo por tudo querer demasiado: "Nunca me abandones!"- rogo-te em seguida, na certeza de estar a acontecer o contrário; fingindo submeter-me, dar-me, para melhor litigar, procurar o poço do teu fundo, à descoberta das tuas catacumbas e cisternas, dos teus escombros, das tuas fundações e caves escuras. Sem impedir a sofreguidão que impele a dureza vingativa que me incita a armar-te ciladas, a usar armadilhas para te aprisionar, minha raposa prateada, meu lobo desalmado. Minha caça. Tu deslumbras-me e metes-me medo pelo imenso poder que manténs sobre mim, abrigando-me e apartando-me, recolhendo-me e largando-me, com uma futilidade caprichosa, cruenta, amando-me para me negares. No esquecimento de como a minha antiga natureza geniosa me leva à rebeldia e à desobediência, à ruptura, na pressa de desprender-me, de libertar-me, a ganhar terreno para melhor me esquivar, desatar os nós corredios que deste na minha sorte, mapa de traições e clausura. A iludir a avidez pela tua magreza, pela tua palidez sombria, pela tua doçura de madressilva, pelo bistre das tuas olheiras, do cansaço que ao apaziguar-te afinal te cede às escarpas íngremes da minha cobiça, que acaba por te tornar objecto único da turva tentação do meu anseio. Neste delírio, nesta alucinação, nesta desordem, neste rancor acrescido. A apropriar-me de ti através da morte, por não poder ser através da vida, enquanto te amordaço, te ato, amarro a nudez do corpo que lavo e aliso, embalo e acaricio. Exigente. Porque não pretendo somente a temperatura da tua pele, a tua carnação toldada, o licor da tua saliva, a melancolia de seda das tuas pálpebras, a ogiva das tuas lágrimas, a tua insustentável tristeza, a leviandade dos teus sonhos, a essência da tua nostalgia. Numa ambição desmedida, quero as tuas veias, a haste do teu pescoço quebradiço, quero a tua respiração opressa, o carmesim da romã do teu ventre, quero a imobilidade dos teus pulmões, a tua respiração silenciosa, quero o rubi derramado do teu sangue, o sopro vago da tua pulsação, quero a precariedade mórbida dos teus testículos, a rudeza almiscarada para sempre aquietada do teu pénis. "Dorme, minha orquídea brava" - murmuro em surdina, quando sem tremer deponho na palma côncava da minha mão o teu coração inerte. Com as suas pétalas escarlates, as suas folhas esmeralda, com as suas raízes de salitre. Um coração quebrado, que te arranquei do lado esquerdo do peito, por mim cortado, separado em duas meias partes.
Maria Teresa Horta
Posted by Picasa

Comentários:
olá, amigo!

Venho cumprimentar-te por teu blogue, ele é muito convidativo. Aprecio teu interesse por figuras literárias.

Vou-te agregrar aos meus "favoritos"!
 
Obrigado.
Já visitei teu blogue.
Um abraço
 
Postar um comentário

« Voltar

This page is powered by Blogger. Isn't yours?

FREE hit counter and Internet traffic statistics from freestats.com